Nesta semana:
Assim como o futebol, o Carnaval é uma parte constitutiva essencial do imaginário brasileiro. Curiosamente, no entanto, são dois fenômenos que o cinema brasileiro de ficção poucas vezes conseguiu filmar com a intensidade de sentimento que os fenômenos congregam. Uma das exceções certamente é este A Lira do Delírio, onde Walter Lima Jr. incorpora à própria estrutura e forma do filme uma tamanha liberdade que acabou transformando a experiência de realizá-lo, assim como a de assisti-lo, em algo próximo do êxtase e da perda de sentidos típicos da folia momesca. Triste e alegre, como o Carnaval, o filme marca ainda a última atuação de Anecy Rocha, falecida ainda antes da montagem ser concluída, e que reluz com especial brilho na tela.
:: A LIRA DO DELÍRIO
De Walter Lima Júnior
(RJ, 1978, fic, cor, 105 minutos)
No intervalo entre dois carnavais de um bloco de Niterói, uma “taxi-girl”, Ness Elliot, se envolve com um rico e ciumento amante. Para submetê-la à sua vontade, ele tenta os mais diversos artifícios, como a tentativa de transformá-la numa traficante de tóxicos e o seqüestro de seu bebê. Desesperada mas firme, ela procura ajuda de antigos companheiros do bloco de sujos Lira do Delírio.
Data: Sexta, 28 de novembro
Local: Cine-Teatro Vila Rica
Hora: 23:00
ENTRADA FRANCA
CONTOS DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Por Rodrigo de Oliveira
Nem toda a alegria impregnada
Dita desta maneira, num tom que parece evocar uma voz do além, talvez esse chamado à realidade soe profético. No entanto, A Lira do Delírio não é um exercício de prospecção, mas um sincero inventário das ilusões. Olha-se para o Carnaval com uma frontalidade que talvez nenhum outro filme brasileiro jamais tenha alcançado; é porque não se apega ao pequeno universo que, durante quatro dias do ano, forja um espaço idílico para a fantasia de todos nós. O delírio só pode ser vivido em sua plenitude se houver a consciência de que a quarta-feira de cinzas está logo adiante: nem toda a alegria consegue evitar o desencanto, a ressaca.
Em 1973, Walter Lima Jr., seus atores e uma equipe mínima saíram pelas ruas do centro de Niterói dispostos a mergulhar de cabeça no desfile de blocos. Não havia personagens ainda, apenas atores fantasiados, interagindo com a vida real. Estas são as imagens granuladas e saturadas que aparecem no começo, e depois pontuam a narrativa. Cinco anos depois, o diretor retorna a esse material semidocumental e tenta alinhavá-lo dentro de um enredo. O primeiro corte de um momento a outro dá a dimensão exata do que se passou nesse intervalo. Saímos do encontro animado entre uma foliã e seu cortejador para, num salto, reencontrá-los numa boate, agora já como Nessi Elliot e Cláudio, uma táxi-girl e um malandro da noite. O que antes se mostrava uma franca e desmedida partilha de afetos agora se tornou uma relação comercial, racionalizada pelos papéis que ambos assumiram ao longo dos anos, uma barreira sentimental intransponível.
É uma ressaca moral, antes de qualquer coisa.
Tudo recomeça na quarta-feira de cinzas, como Pereio anuncia no final, “e o carnaval passado deixou marcas profundas demais para serem ignoradas”. Num país que estava a um ano de ver a anistia de seus exilados, e que ainda não conseguira calcular os mortos e desaparecidos nos porões da ditadura, a experiência da ressaca parecia tão fundamental e necessária quanto a incontornável vontade de enxergar algum lirismo em meio a todo aquele caos delirante.
Próximo filme do Cineclube ComCine em 2008:
sex 05/12 – O Homem que Virou Suco (de João Batista de Andrade) e A Saga da Asa Branca (de Lula Gonzaga)